Uma vez no passado
 



Contos

Uma vez no passado

Regina Maria Guaragna


Toque de recolher. Blackout a partir das 19h. Tudo escuro.

Após a janta, todos ficavam na sala, sentados ao redor da mesa, que tinha duas velas acessas fixadas no gargalho de duas garrafas. Éramos cinco irmãos, todos formavam uma escadinha no tamanho e idade. O irmão mais velho tinha onze anos e o menor, três.

A sala ficava numa penumbra, muitas vezes assustadora pelas brincadeiras que minha mãe fazia. Costumava contar histórias e projetava imagens na parede: pássaros, coelhos, cães. Logo aprendíamos a fazer as sombras, nos intrometendo. Todos queriam falar ao mesmo tempo para que a sua ideia prevalecesse. Muitas vezes brigávamos e minha mãe dava um ‘basta!’ e nos colocava para dormir.

Numa noite, ouvimos o barulho de aviões sobrevoando a cidade. Ficamos todos atentos, em silêncio, até que meu pai falou:

- Ouvi dizer no centro da cidade que a revolução vai chegar. O governo não está bem. Caso isto venha a acontecer teremos que morar no porão de casa.

- No porão? ­ falamos juntos.

- Vamos ter que limpar e nos esconder lá. Pois estes aviões podem soltar bombas. Precisamos nos proteger.

Meu pai falava desta maneira, pois havia vivido durante a segunda grande guerra.

Naquela noite, ao me deitar na cama, não consegui dormir, pensando em como vamos caminhar no porão se ele é muito baixo? Vamos precisar andar curvados, dormir no chão?! Imaginava arrumando uma coberta no chão para me deitar, próximo a janela gradeada do porão, que ficava abaixo do meu quarto. Conseguiria ver as plantas do jardim e quem entrava e saia da casa. Adormeci como se já estivesse dormindo no porão.

Passaram-se os dias. A noite, meu pai, sempre trazia notícias: tiroteio no centro da cidade, tanques, caminhões do exército, soldados nas ruas. Além disso, estava faltando alimentos. O leite passou a ser racionado, ou seja, um litro por pessoa. Éramos cinco crianças que tomávamos leite como terneiro. Como nos alimentar?

Numa noite meu pai anunciou que todos deveríamos acordar cedo, antes do caminhão do leite chegar. Deveríamos ir para a frente do armazém, formar fila, eu, meus dois irmãos maiores e meu pai. Cada um com um litro para comprar leite. Minha mãe ficaria em casa com meus dois irmãos menores. Deu para perceber que eu era a filha do meio?

No dia seguinte, acordamos, antes do caminhão do leite. Fomos para a frente do armazém. Estava frio. Já estávamos vestidos com o uniforme da escola e uma japona de lã azul marinho. Brincávamos de fazer vapor pela boca, respirávamos fundo e soltávamos o ar. De repente, ouvimos o barulho das garrafas de vidro se baterem nas grades metálicas do caminhão. Tilim...tilim...tilim...

- O leite chegou! - gritamos juntos.

Logo que descarregavam as grades, o leite era entregue, um a um. No final meu pai entregou um caderno para o dono do armazém fazer uma anotação e cobrar depois no início do mês.

Fizemos isto durante vários meses.

Minha mãe ficou sabendo que na subsistência do exército não existia racionamento. Então, para nos suprir de outros alimentos fez contato com um tenente, que era nosso tio.

Um certo dia, quando chegávamos da escola, vimos um caminhão do exército em frente de casa. Os soldados descarregavam muitas caixas e sacos.

Corremos direto para casa!

- Mãe...mãe... o exército!

Nunca tínhamos visto tanta comida: farinha de trigo, de milho, arroz, feijão, óleo de soja e ainda ração para as nossas galinhas.

Passamos a comer pão feito em casa. Os melhores pães que já comi em toda a minha vida!

Os dias se passaram, a revolução veio, mas não fomos morar no porão. Sempre me lembro deste momento toda vez que os acontecimentos trocam de rumo na vida. Ainda mais nesses tempos.


Regina Maria Guaragna é participante do Curso Livre de Formação de Escritores da Metamorfose.

 

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